Cartas de Amor - Fernando Pessoa
Ophelinha:
Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indifferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de "razões" tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m'o. Assim, entendo da mesma maneira, mas dõe-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quizer: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso "entalar".
Porque não é franca para commigo? Que empenho tem em fazer soffrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a propria vida isolada e triste, e não precisa de que lh'a venham accrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe affeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é comico, e que a parte mais comica d'isto tudo sou eu.
Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse no soffrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amál-a, o tenha merecido, e creio bem qeu amál-a não é razão bastante para o merecer. Enfim...
Ahi fica o "documento escripto" que me pede. Reconhece a minha assignatura o tabellião Eugenio Silva.
1.3.1920.
Fernando Pessoa
pp. 48-49
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